Robert Longo. Uma Retrospetiva
[...] Organizada de acordo com um percurso cronológico, a retrospetiva de Robert Longo no Mamac de Nice [apresentada agora no Museu Coleção Berardo] permite verificar o ponto em que cada sequência da obra emerge formalmente da precedente. A exposição inicia-se, como é esperado, com a série Men in the Cities, grandes desenhos a carvão que tornaram o artista célebre no final da década de 1970. Sobre um fundo imaculado, homens e mulheres, sobriamente vestidos de preto e branco, adotam posições forçadas, contorcionadas, como num momento congelado de uma dança. Lembram-nos também a Morte de um soldado republicano, célebre fotografia tirada por Robert Capa durante a Guerra Civil de Espanha. As figuras de Men in the Cities parecem, de facto, ter sido colhidas por uma rajada de tiros. Nada de espantar, pois Longo pedia aos seus amigos que posassem no telhado do seu atelier em Nova Iorque e lançava-lhes bolas de ténis, das quais eles se deviam esquivar. Era nesse preciso momento que lhes tirava a fotografia destinada a alimentar os seus desenhos. Estes últimos «deviam ser apresentados em grupos de três, cinco ou sete… Este conceito de agrupar os desenhos conduziu aos Combines.» Os Men in the Cities formam, assim, como que uma sucessão de fotogramas. Os Combines, ao justaporem diferentes estilos e materiais, são como «montagens estáticas de filmes»: «O que me interessa é a colisão. A colisão de estilos, de matérias e de imagens. A combinação de elementos devia conduzir a uma identidade completamente nova que transcendesse as partes. A sua materialidade equivale ao trabalho efectivo da montagem da película.» No início da década de 1980, esta «colisão cinematográfica» manifesta-se em vários artistas americanos, por exemplo, nos quadros de David Salle, Julian Schnabel ou Eric Fischl. Com os Combines, as obras de Longo ganham uma perspectiva mais escultórica. Desenhos e pinturas vêem-se prolongados por elementos tridimensionais num mesmo políptico. Em Sword of the Pig (1983), um torso musculado colocado lado a lado com uma imagem de serigrafia de uma estranha fábrica e de uma agressiva forma escultural negra. Em Black Planet (1988), uma esfera escura sofre uma hemorragia de bílis negra, derramando um amontoado de fios de neopreno. Quanto a Black Flags, de bronze (1990), oferecem a imagem de uma bandeira drapejando ao vento ou a meia-haste, dependendo das versões, mas sempre queimada por um qualquer povo longínquo e descontente ou oprimido e enviscado de petróleo.
Imensidade íntima
No início dos anos de 1990, a paixão pelo cinema leva Longo a realizar um filme, Johnny Mnemonic, que revela o então jovem Keanu Reeves. Esta incursão hollywoodesca exigiu dele muita energia, fazendo-o, então, sentir a necessidade de se voltar a centrar no desenho, com a série Magellan (1996): trezentos e sessenta e seis esquissos desenhados a preto e branco, à razão de um por dia, durante um ano. Longo retirou os temas da imprensa diária. A sua escolha assentou tanto em considerações formais como naquilo que elas «diziam» da época. Estes temas – um astronauta, Bruce Lee, um acidente de carro… – chocam uns com os outros, tal como acontecia com as diferentes componentes dos Combines. Magellan, dá, sem qualquer dúvida, o mote para a continuação da obra. Pois a sequência são os ameaçadores desenhos de vagas, as explosões atómicas, os planetas, os grandes tubarões brancos, todos eles capturando a atemorizante beleza da natureza. Contrabalançados pelas flores vermelhas cor de sangue e os rostos das crianças que dormem. A maior violência coabitando com a maior doçura. Executados depois de 1999, estes desenhos de grandes dimensões, através dos quais Longo pretende atingir um sentimento «de imensidade íntima», ganham a dimensão de uma ordem vitalista sobre a qual o homem não tem influência: «Juntas, estas imagens representam a concretização do seu ser: uma bomba, supostamente, deve explodir; uma vaga, rebentar; uma rosa, desabrochar.»
E esta violência, de uma beleza extraordinária, é também a violência de uma época em forma de bomba-relógio, que «insufla» um ar de nada na escolha dos motivos através da analogia formal, cada um engendrando outro: «Por exemplo, o 11 de Setembro ocorreu no momento em que eu desenhava as vagas e, pouco a pouco, elas começaram a assemelhar-se cada vez mais a labaredas e a fumo. Cheguei a utilizar fotografias do World Trade Center cheias de fumo para representar as vagas. Alguém me enviou também uma fotografia do World Trade Center a desabar, que saiu da minha impressora ao contrário... De facto, aquilo assemelhava-se, de uma forma espantosa, a um cogumelo atómico.»
Romantismo fatal
Alguns anos mais tarde, em 2005, o 11 de Setembro deixa de contaminar discretamente outros motivos para se transformar no tema manifesto de um tríptico: o painel central, que supostamente devia representar as torres, é um monocromo negro. Já em Men in the Cities – cujos corpos desarticulados nos parecem, hoje, anunciar, com vinte anos de avanço, as pessoas desesperadas atirando-se das torres nova-iorquinas –, o negro das roupas formava uma zona lisa, sem qualquer relevo, fragmentos de abstração lançados em desenhos figurativos. Porém, em Longo, decididamente, o negro não é tanto a superfície tranquilizadora contra a qual embatemos, mas um abismo sem fim, uma longa queda ou um pesadelo cujo fim desconhecemos: a queda é mais assustadora do que o esmagamento, pois tocar no fundo induz a possibilidade de fazer ricochete. O negro de Longo é a perda de si nas profundezas insondáveis, infinitas.
Poucos artistas conseguiram, até hoje, captar tão bem a essência de nossa época sombria, em relação à qual ninguém saberá quando ocorrerá o «ricochete». Espectador intuitivo, Longo desenvolve, há mais de trinta anos, na prática do desenho a carvão, o que Werner Spies denomina de «romantismo fatal»: «Não há nada nos trabalhos mais recentes de Longo que indique a existência de algo por detrás de uma melancolia abissal. No máximo, podemos dizer que este horror se transformou num sublime absolutamente eficaz. Pois o que vemos, as vagas impetuosas que tragam todas as coisas ou os cogumelos atómicos em pleno florescimento, expondo em diferentes cenas as variações sempre renovadas de um espectáculo mortal, são literalmente os quadros do apocalipse, imagens às quais mais nenhuma outra imagem saberia suceder.» A exposição [...], de forma expressiva, termina num monocromo negro.
Richard Leydier
[Texto originalmente publicado na revista Artpress, n.° 360, outubro de 2009. Cortesia do autor.]
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Museu Coleção Berardo
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